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Produção e Distribução de Jornalismo para Mídias Digitais

Assentos vazios, luzes apagadas e silêncio nos corredores

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Por: Cassiano Taffarel, Leonardo Colato e Natália Valduga

De domingo a domingo, antes da pandemia do novo coronavírus se tornar um princípio básico da vida, era normal contar com a disponibilidade de uma forma de lazer específica. Lazer esse, aliás, que parecia não ter fim nunca – independentemente do que acontecesse, sempre estava funcionando. Falamos aqui do cinema. Anteriormente, as sensações de estar na sala costumavam envolver um arrepio no braço ao sentir o primeiro contato com o ar-condicionado, a cautela ao subir as escadas iluminadas – que, diga-se de passagem, não eram tão iluminadas assim –, e a completa absorção da história ao assistir o filme escolhido. Contudo, há mais de um ano, não existem previsões para que a luz dos projetores das salas de cinema volte a brilhar na tela.

O entusiasmo de frequentar o cinema é um sentimento único e incomparável. De acordo com Alfredo Barros, montador cinematográfico porto-alegrense e professor da disciplina de Narrativas Audiovisuais na ESPM, o fato de dividir a sala com pessoas que não conhecemos é mais do que apenas consumir um conteúdo. Para ele, se assemelha, de certo modo, a um ritual: o resultado de estar com desconhecidos, dentro da mesma sala, vivendo a experiência igualmente – chorando, sofrendo, sorrindo em conjunto – é algo completamente diferente. Essa “comunhão da experiência”, termo utilizado por ele, traz ao telespectador algo próprio daquele universo, que não pode ser repetido em casa ou em outros locais.

“Rir de uma piada no cinema, junto com outras pessoas, é completamente diferente de rir em casa – tem coisas que eu nem vou achar tão engraçado vendo o filme sozinho.”

Alfredo Barros

Para os amantes e consumidores da sétima arte, o impacto foi explícito. Entretanto, os números revelam uma situação ainda mais complexa do que a vista do “lado de fora”. Realizando um comparativo entre 2019 – o último ano não afetado pela crise sanitária – e 2020 – o primeiro ano de paralisação do cinema –, é possível entender o real efeito da pandemia nessa área. Segundo dados divulgados pela Agência Nacional de Cinema (Ancine) no Anuário Estatístico do Cinema Brasileiro de 2019, os resultados de bilheteria do país reverteram as quedas ocorridas em 2017 e 2018 com um aumento de 7,9% do público total, ultrapassando 176 milhões de pessoas e atingindo uma renda de quase 2,8 bilhões de reais. Em 2020, no entanto, ainda conforme os dados disponibilizados pela Ancine, o público total do cinema não chegou a 40 milhões de pessoas, uma queda de aproximadamente 77,7% em relação ao ano anterior, e a renda obtida com a exibição de filmes foi em torno de 630 milhões de reais, uma diminuição de cerca de 77,4% em referência a 2019.

Ainda que Minha Mãe É Uma Peça 3 tenha sido a principal exibição do cinema brasileiro em 2020, vale ressaltar que o filme foi lançado no ano de 2019. Além disso, a quantidade de títulos lançados no país no mesmo ano é maior do que o disponibilizado no primeiro ano da pandemia. Em 2019, 444 títulos foram apresentados no país, enquanto no ano seguinte o número decaiu para 175 – menos da metade do que se tinha anteriormente. 

Contudo, não é exclusivamente pela ótica dos números de bilheteria que a crise do cinema deve ser analisada, afinal, ele não é composto somente pela exibição da obra e o consumo do público: envolve produção, edição, distribuição, enfim, compreende trabalho e envolve pessoas, profissionais. Para a montadora, dramaturga e diretora de projetos audiovisuais e peças teatrais Thais Fernandes, a área, que estava em progresso, passou por um “perrengue” antes da pandemia, apesar dos números positivos nas bilheterias, como apontou o estudo da Ancine. Segundo a entrevistada, a ascensão ao poder do atual presidente Jair Bolsonaro, em 2019, e a reestruturação do Governo Federal de acordo com suas políticas extremistas de direita acarretou uma guerra entre o Estado e o setor artístico, no geral. 

Para o cinema, Thais identifica que o principal efeito negativo ocorreu no Fundo Setorial Audiovisual (FSA), sendo esse o mais influente meio de financiamento de editais para a arrecadação de recursos para a realização das produções audiovisuais. Criado por meio da Lei 11.437, de 28 de dezembro de 2006, com a finalidade de estimular a produção do cinema independente, a distribuição de obras audiovisuais e a parceria com outros países, o FSA possui recursos estimados na casa das centenas de milhões de reais, que, no entanto, não estão sendo repassados ao cinema justamente por falta de vontade política.

“O nosso cinema está seriamente ameaçado. Claro, daí junta isso [o sucateamento do FSA] à questão da pandemia e temos um combo terrível, porque a gente não pode contar com um edital público e não consegue realizar o que tem para fazer porque, enfim, estamos no meio de uma pandemia.”

Thais Fernandes

No sul do país, mais especificamente no Rio Grande do Sul, a produção cinematográfica e a participação do público é bastante intensa. Mesmo assim, o núcleo audiovisual também sofreu impactos significativos no estado. Conforme informações divulgadas no citado Anuário de Cinema Brasileiro de 2019, o público que assistiu a filmes nas salas gaúchas foi de pouco mais de 8 milhões de pessoas naquele ano, tornando o estado o 5º maior consumidor de cinema do país. Mantendo esse posto em 2020, mas em uma menor escala por causa da quarentena, o número de espectadores sul-rio-grandenses não chegou a 1,7 milhão de pessoas, uma queda de cerca de 78,9%.

Segundo Luiz Alberto Cassol, cineclubista, diretor, produtor e roteirista, as políticas públicas pré-sucateamento do cinema estavam se tornando cada vez mais inclusivas, possibilitando um maior número de produções no estado. Para ele, essa era a grande característica da época: havia uma diversidade de produção surgindo. A partir disso, novas filmografias vinham sendo conhecidas ao redor do Rio Grande do Sul, feitas no interior ou próximas da capital. 

Com a chegada do novo coronavírus ao país e a radical mudança na política cultural, a democratização do cinema se tornou refém de auxílios para segmentos artísticos, abertura de editais privados e, também, dos streamings. Instaurada em 29 de junho de 2020, a Lei Nº 14.017 – mais conhecida como Lei Aldir Blanc – é responsável por distribuir ações emergenciais destinadas ao setor cultural nacional durante a situação de calamidade pública, tais como renda mensal, subsídio para a manutenção de espaços artísticos e o desenvolvimento de atividades de economia criativa. Do mesmo modo, diversas fundações liberam editais com aportes simbólicos, mas a ampla e intensa concorrência torna os processos pouco acessíveis. Ainda assim, a Lei Aldir Blanc foi a principal ferramenta dos artistas cinematográficos durante o enfrentamento da pandemia. Afinal, fazer na virtualidade o que seria feito presencialmente foi – e está sendo – um desafio tanto para a adaptação do audiovisual quanto para o seu público.

Ao falar sobre o boom do streaming durante o período de isolamento imposto pela pandemia do covid-19, Luiz Alberto ressalta a importância desse acontecimento. Segundo o diretor, o fato de estarmos em casa fez com que as pessoas descobrissem a qualidade das séries e filmes produzidos no país – o que pode ser considerado uma surpresa agradável porque, até então, ele nunca havia presenciado tantos debates sobre conteúdos audiovisuais. Além disso, o diretor também afirmou que o audiovisual foi e continua sendo fundamental para a saúde mental da população na situação em que nos encontramos. Sem a arte e sem a possibilidade de acesso à comunicação, a sociedade não seria capaz de lidar da maneira que fez com a pandemia. 

“Eu sou um que posso dizer que sobrevivi tanto pessoalmente quanto artisticamente […].

Eu posso dizer que a arte me salvou na pandemia.”

Luiz Alberto Cassol

Luiz Alberto, santa-mariense de nascimento, ainda lembra que o cinema gaúcho não se resume ao cinema produzido e exibido em Porto Alegre ou na região metropolitana; há uma rica presença da arte em todo o estado, de norte a sul, cada região apresentando sua cultura e peculiaridades por meio do audiovisual. Antes da pandemia e das mudanças no Governo Federal, contou ele, a produção do cinema regional no Rio Grande do Sul estava acontecendo em um ritmo acelerado. Contudo, na categoria de longa-metragens gaúchos do 48º Festival de Cinema de Gramado, o maior e mais tradicional festival de premiações de cinema do Brasil – que ocorreu de forma inteiramente on-line no primeiro ano da pandemia –, somente um dos filmes indicados é de fora do eixo metropolitano: o documentário “Deborah! O Ato da Casa”, dirigido e produzido de maneira remota ao longo da pandemia justamente por Luiz Alberto, em Santa Maria. Isso mostra a disparidade da veiculação e da consciência de existência entre obras que não são produzidas na capital e aquelas que são.

A contemplação e o “fazer” cinematográfico são como montanhas-russas: momentos de ascensão seguidos por quedas intensas, e vice-versa. Pré-pandemia, mesmo que estivesse sendo fomentada a promoção da diversidade de produções regionais nas telonas, a situação já era delicada devido à falta de incentivo econômico do Governo Federal no setor. Porém, com o covid-19, o cinema passou a enfrentar ainda mais obstáculos, como as paralisações nas bilheterias e a necessidade de readequação dos projetos. É importante ressaltar, apesar disso, que criativamente o cinema não parou: pode-se dizer que a atual situação é um recomeço, uma readaptação, uma vez que os assentos vazios voltarão a ser ocupados, as luzes apagadas tornarão a brilhar e o silêncio nos corredores será substituído pelo burburinho das conversas dos amantes da sétima arte.

* Enquanto as coisas não voltam ao “velho normal”, fique em casa e aprecie algumas indicações feitas pelos entrevistados: