O galope do cavalo fazia o vento tocar-lhe o rosto. Não havia buzinas nem celulares tocando, apenas o som dos cascos encontrando a terra. Era um dia como qualquer outro, e talvez tenha sido isso que o fez extraordinário. Para um jovem Gaucho do século XIX, lançar uma boleaderia fazia parte da rotina dos pampas. Mas, para um naturalista britânico de 24 anos chamado Charles Darwin, foi uma experiência digna de relato em seus diários.
Costuma ser pouco divulgado que Darwin passou meses na companhia de Gauchos – como eram chamados os gaúchos, na época – durante sua viagem de cinco anos pelo mundo, que resultou na famosa obra “A Origem das Espécies”. A expedição teve início no dia 27 de dezembro de 1831, quando o navio HMS Beagle zarpou de Plymouth, no sul da Inglaterra, em direção à América do Sul.
A missão de Darwin, conforme requisitado pelo governo britânico, era observar, registrar e coletar tudo o que achasse interessante, incluindo fauna, flora e geologia das regiões visitadas. As mais de doze mil cartas, anotações e documentos que o naturalista enviou para a Inglaterra podem ser encontradas, atualmente, no acervo da Universidade de Cambridge. A instituição disponibilizou boa parte do conteúdo virtualmente por meio do site: https://www.hps.cam.ac.uk/about/research-projects/darwin-correspondence
Uma das cidades que mais marcaram as andanças de Darwin pela Banda Oriental – região que compreendia, na época, Uruguai, Rio Grande do Sul e uma parte de Santa Catarina – foi Maldonado. Situado a 130 quilômetros da capital Montevidéu, o município que hoje conta com cerca de 105 mil habitantes era algo semelhante a um pequeno vilarejo em 1833, quando o Beagle ancorou na Baía de Maldonado. Darwin permaneceu na cidade por dois meses e meio e, apesar de não ter visto nada que lhe chamasse a atenção num primeiro momento, sua descrição dos habitantes e de alguns dos costumes locais revelam não só aspectos intrínsecos do naturalista, mas também de nós mesmos como gaúchos. Para aqueles que tiverem a chance de passar por Maldonado, é possível encontrar alguns dos rastros deixados pelo britânico no Museu Regional Francisco Mazzoni, situado no centro da cidade.
A Chegada
“É uma cidadezinha excessivamente tranquila, com ruas traçadas perpendicularmente e, no centro, uma grande praça cujo tamanho evidencia a escassez de sua população”. Essas foram algumas das primeiras impressões escritas por Charles Darwin ao chegar em Maldonado. O britânico prossegue dizendo que há muito pouco comércio, sendo as exportações limitadas a algumas peças de couro e gado vivo. “Os habitantes são majoritariamente donos de terras, além de alguns comerciantes, ferreiros e carpinteiros”.
“Há um certo charme no sentimento de liberdade ao caminhar por extensas planícies gramadas.” – Charles Darwin
Com relação à paisagem, Darwin descreve os campos ondulados de grama verde que cercam Maldonado, onde “incontáveis rebanhos de gado, ovelhas e cavalos pastam”. Embora descreva o cenário como “desinteressante”, o naturalista ressalta que “depois de ter ficado confinado em um navio por um bom tempo, há um certo charme no sentimento de liberdade ao caminhar por extensas planícies gramadas.”
A Bússola
Ao relatar os detalhes de sua convivência com os habitantes da Banda Oriental, um fato que chamou a atenção de Darwin foi o fascínio das pessoas por sua bússola. “Em todas as casas que passei”, conta, “me pediam para ver a bússola e, junto a um mapa, queriam que lhes mostrasse como eu a usava para chegar a vários lugares”. Fica claro que se tratava de um objeto essencial em suas jornadas, já que as viagens do Beagle incluíram mais de dez países, dentre eles Brasil, Uruguai, Argentina, Chile, Nova Zelândia e África do Sul – até então desconhecidos por Darwin. “A mais viva das admirações era incitada pelo fato de que eu, um perfeito estranho, sabia o caminho para locais em que nunca estive”.
Outro aspecto que entreteve o britânico foram as perguntas elaboradas pelos Gauchos. Considerando que viajantes europeus não eram comuns na região, Darwin relata que lhe questionaram sobre o clima no hemisfério norte, onde ficava a Espanha, se a Terra ou o Sol se mexiam, entre outras indagações. Quase podemos ver o sorriso de Darwin ao escrever “os mais bem informados sabiam que Londres e América do Norte eram países distintos, porém vizinhos, e que a Inglaterra era uma grande cidade em Londres!”.
À medida que registra essas situações, Darwin chega a uma conclusão interessante: conhecimento também é uma forma de barganha. Por ter se hospedado em diversas casas, principalmente à noite, ele conta que “o encanto pela bússola, minhas histórias de viagens e meu conhecimento sobre picadas de cobra e insetos se mostraram vantajosos, pois foi com isso que retribui a hospitalidade dos habitantes locais”.
Os Gauchos
“A aparência deles é marcante. Geralmente são altos e belos, mas levam no semblante uma expressão de orgulho e decadência”. Foi assim que Darwin descreveu os Gauchos, que muito o acompanharam em suas bandas pelos pampas. “A maioria usa bigodes, com o cabelo preto e comprido descendo em cachos por suas costas.”
A vestimenta também chamou a atenção do naturalista pelas cores vibrantes, além do uso de esporas e facas na cintura. Apesar da aparência rústica, Darwin se surpreende por “sua cordialidade excessiva”, afirmando que “eles nunca tomam suas bebidas antes que você tenha provado a sua”. Contudo, uma ressalva: “ao se curvarem graciosamente, eles parecem prontos, caso a ocasião se apresente, para cortar sua garganta.”
Além de caracterizar a figura do Gaucho em si, o cientista também dedicou trechos de seus diários aos artigos tradicionais usados por estes. Sobre o laço, Darwin registra: “quando o Gaucho vai usar o laço, ele o rodopia sobre a cabeça e, com um hábil movimento do pulso, consegue mantê-lo girando. Ao jogá-lo, ele faz com que caia no lugar desejado”. O britânico também narra o manejo da boleadeira, que é similar ao uso do laço. “O Gaucho segura a menor das três bolas na mão, enquanto gira as outras duas sobre a cabeça; ao mirar no alvo, lança-as como uma corrente que rodopia pelo ar”.
“A aparência deles é marcante. Geralmente são altos e belos, mas levam no semblante uma expressão de orgulho e decadência.” – Charles Darwin
Vale ressaltar que Darwin teve contato com vários povos e culturas ao longo de sua expedição, e suas impressões a respeito de cada um também foram distintas. Contudo, mesmo se referindo a alguns como “selvagens”, é importante lembrar que o naturalista sempre defendeu que não havia raças ou etnias mais evoluídas que outras, sobretudo no âmbito biológico. “Darwin era um monogenista, ou seja, afirmava que todos os seres humanos tinham o mesmo ancestral em comum”, reitera a historiadora Heloísa Domingues, professora e pesquisadora do Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST), localizado no Rio de Janeiro.
Mesmo sendo contestado por outros cientistas, como Herbert Spencer, que acreditavam na superioridade do homem branco, é admirável que Darwin, um homem branco europeu do século XIX, mostrasse repúdio ao racismo de alguns de seus colegas intelectuais. “Ele e a família eram antiescravistas ferrenhos”, diz Heloísa. “De fato, nesse ponto Darwin tinha uma mentalidade muito à frente do seu tempo”.
Ave Maria
Quando batia à porta de estranhos requisitando um lugar para passar a noite, Darwin detalha as formalidades seguidas pelos moradores da Banda Oriental. “Ao trotar lentamente até a porta da frente, a saudação da Ave Maria é dada,” relata, “e até que o dono da casa responda ‘sem pecado concedida’, não se costuma descer do cavalo”. Ele conta que é de praxe conversar com os residentes da casa por alguns minutos antes de pedir permissão para ficar até o amanhecer; se concedida, “o estranho faz suas refeições com a família e um quarto lhe é indicado, onde ele faz sua própria cama usando a manta da sela de seu cavalo”.
“Nunca fui um ateísta no sentido de negar a existência de Deus.” – Charles Darwin
Um fato curioso sobre Darwin era sua relação com a religião. Apesar de, em sua autobiografia, afirmar que suas crenças foram se direcionando gradualmente do Cristianismo Anglicano para o agnosticismo, o cientista era muito reservado quanto ao seu parecer sobre o assunto. No entanto, em uma carta enviada ao missionário inglês John Fordyce, Darwin escreve: “Nunca fui um ateísta no sentido de negar a existência de Deus”.
Desde a publicação de “A Origem das Espécies” – em 1859 –, as discussões polêmicas entre ciência e religião se tornaram constantes na vida de Darwin. Porém, da mesma forma que havia católicos que consideravam o naturalista nada além de um herege, existiam aqueles que abraçaram a teoria de Darwin sobre a evolução. Conforme ressalta a pesquisadora do MAST, “muitos jesuítas no Rio Grande do Sul, por exemplo, também se diziam darwinistas”.
O Gaucho Britânico
“Um dia estava me divertindo enquanto galopava e rodopiava a boleadeira, até que uma das bolas ficou presa num arbusto”. Geralmente muito sério em suas anotações, assim começa um dos contos gauchescos mais divertidos de Darwin. Ele prossegue dizendo que as duas bolas foram imediatamente ao chão e, “como mágica”, uma delas se enrolou na perna de seu cavalo. “Por sorte era um animal experiente, e soube se manter calmo; caso contrário, provavelmente teria caído de tanto dar coices para se soltar”.
Os Gauchos que testemunharam a cena, segundo o naturalista, rugiram de tanto rir. “Eles disseram que já haviam visto todo o tipo de animal ser pego, mas nunca tinham assistido a um homem pegar a si mesmo.”
187 Anos Depois
O HMS Beagle atracou na Baía de Maldonado ao entardecer do dia 18 de abril de 1833. Enquanto esteve na cidade, Darwin ficou hospedado na casa de Dona Francisca Otermín, como consta no livro Charles Darwin em Maldonado, escrito pela bióloga uruguaia Susana Romero.
Além de artigos como sua célebre bússola, o cientista trouxe consigo uma pequena banheira de madeira, que deixou no Uruguai após sua partida. O objeto está hoje no Museu Regional Francisco Mazzoni, em Maldonado, junto a retratos de Darwin. “Poucas pessoas sabem que ele esteve aqui”, conta Nora Velásquez, guia do Museu Mazzoni. “O que mais atrai as pessoas para o museu é o livro escrito pela Susana Romero, que é elogiado por ser muito completo no que diz respeito à estadia de Darwin em Maldonado”.
Situada no centro da cidade, na esquina das movimentadas ruas Sarandí e Florida, a casa de dona Francisca é hoje um restaurante, o Sumo Resto Café. Nos fundos do estabelecimento fica a Sala Charles Darwin, envolta por paredes verdes que ostentam murais contando breves trechos da biografia e descobertas do naturalista, bem como detalhes de sua passagem por Maldonado. A sensação de desfrutar uma típica parrilla uruguaia no mesmo local em que Darwin provavelmente fez diversas refeições é, no mínimo, fascinante.
“O restaurante tem 17 anos, antes era uma loja de roupas”, conta Gastón Ferreira, garçom do Sumo Resto Café. “Quando Darwin veio para cá, essa casa era imensa, tinha mais de dez quartos.” Ao ser questionado sobre a possibilidade de fazer do local um restaurante temático, Gastón responde: “O problema é que esse tipo de estabelecimento não dá dinheiro no Uruguai, ainda que seja uma figura importante como o Darwin”.
A Importância dos Diários
Não há dúvidas sobre o quão imprescindíveis foram os diários na vida de Darwin, tanto pessoal quanto acadêmica. Em 1839, ele compilou seus registros da expedição e os publicou em forma de livro, intitulado “A Viagem do Beagle”. Além de terem sido fundamentais na elaboração de sua teoria da evolução das espécies, os escritos do naturalista mostram um homem que se expressava de maneira clara e objetiva, mas que não tinha medo de narrar suas emoções e sentimentos frente a situações que o impactavam.
A prática de escrever diários, sobretudo na comunidade científica, se mantém até hoje. “Muitos usam o computador atualmente”, conta Heloísa Domingues, “mas tenho colegas que fazem pesquisas de campo, como antropólogos e astrônomos, que escrevem em diários físicos”.
Não importa quantos séculos se passem, o charme e a importância dos diários nunca envelhecem. Se não fosse por eles, quase ninguém iria acreditar quando um Gaucho contasse numa roda de chimarrão: “Uma vez vi um homem pegar a si mesmo com uma boleadeira, um gringo! Acho que o nome dele era Darwin.”